
Diáspora nordestina: seca e desigualdade no sertão levam retirantes a buscar uma vida melhor em São Paulo
Diante de adversidades como as longas e frequentes estiagens, milhões de retirantes deixaram a região Nordeste e viajaram para o Sudeste do Brasil em busca de oportunidades de trabalho e educação. A influência da chegada desses migrantes é notória no processo de desenvolvimento de São Paulo em âmbito econômico e cultural, como ressaltam os entrevistados
Ao longo do século XX, as secas constantes na região Nordeste não permitiam que os produtos plantados nas roças viessem a crescer. As longas estiagens geravam prejuízo aos trabalhadores e, consequentemente, fome às suas famílias. O fator climático somado a falta de investimentos em infraestrutura na região foram pontos determinantes para o grande fluxo migratório de nordestinos que saíram de suas terras em busca de oportunidades nas regiões Norte, Centro Oeste e, sobretudo, no Sudeste do Brasil.
Registros relacionados à migração nordestina datam do final do século XIX, muitos anos antes da inauguração da Hospedaria de Imigrantes, atual Museu da Imigração, ou do desenvolvimento dos grandes polos industriais no Brasil, ocorrido após os anos 1930. Esses movimentos de dispersão foram impelidos por crises como a que foi gerada pela seca de 1877-79 (conhecida como a seca dos três setes), que pesquisadores estimam ter deixado 500 mil mortos, principalmente no estado do Ceará.
Há também os registros da seca de 1915, apresentada pela romancista cearense Rachel de Queiroz em sua obra O Quinze, que conta a história de Chico Bento e Cordulina, um casal de retirantes que foge da seca com os filhos para Fortaleza. Naquele período, nas regiões mais impactadas pela falta d’água, foram criados campos de concentração, também chamados de "Os Currais Humanos" ou "Currais do Governo", pelo Instituto de Obras Contra as Secas (IOCS), atual Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS), com o intuito de fornecer aos sertanejos impactados condições mínimas de sobrevivência.
Com isso, o contingente de pessoas chegando em São Paulo, a Terra da garoa, se deu pela chance de sair da miséria vivida no Sertão e pela esperança de uma vida nova em outro estado, ainda que distante. Segundo a professora Lidiane Maciel, pesquisadora do Observatório das Migrações em São Paulo (NEPO/UNICAMP), “o ato de ir para São Paulo se apresentava como a solução para o empobrecimento do campo no Nordeste. ” Lidiane acrescenta que antes da década de 70, a circulação era feita via ferrovias, mas, com o desenvolvimento da malha rodoviária brasileira, as idas e vindas foram facilitadas para os viajantes.
Aqueles que chegavam às zonas urbanas buscavam, acima de tudo, oportunidade de emprego. Por essa razão, as plantações de café nos arredores de SP, e, anos depois, a indústria efervescente atraiu os olhos daqueles que eram conhecidos por aguentarem o pesado trabalho braçal. Acerca desse tema, Lidiane afirma: “Os trabalhadores nacionais migrantes nordestinos foram fundamentais para o tipo industrial brasileiro até a década de 1980, para modelo de produção fordista (tipo de produção rápida e em grande escala). ” Ela acrescenta que a força de trabalho da mão de obra nordestina alavancou a indústria brasileira.
Sertanejos em busca de emprego em SP e no ABC paulista
“Mesmo com a carteira de trabalho branca, o analfabeto que vinha para São Paulo tinha chance de arrumar emprego. ” Essa é a afirmação de Jaime Vieira da Silva. Nascido em Tenente Ananias, RN, o potiguar chegou à capital paulista em 1971 em busca de trabalho, assim como outros milhões de retirantes que viajaram de todos os estados do Nordeste no mesmo contexto.
Atualmente aposentado, ele afirma que desembarcou em seu destino com apenas duas trocas de roupa, uma que vestia no corpo e outra que carregava na bagagem. "Quando eu cheguei na rodoviária que ficava na Júlio Prestes, encontrei meus irmãos que tinham vindo um ano antes de mim. Na estação, quase que eu perdi as roupas que trouxe. A gente morou junto de mais uns trinta rapazes que vieram do ‘Norte’ em uma casa de aluguel. Meu primeiro trabalho aqui foi na indústria de malharia, na empresa que meus irmãos trabalhavam."
Cerca de dois anos depois, Jaime foi buscar emprego na porta de uma das principais montadoras de automóveis do Brasil no período, a Volkswagen. "Eu e meu cunhado fomos para o ABC paulista buscar serviço na Volks. A gente passou a noite inteira na espera por uma vaga com mais uma leva de candidatos. Minha carteira era branca, então eu pensei que estava em desvantagem, porque lá tinha vários caras que já eram experientes em montadoras."
Para a surpresa de Jaime, o segurança chamou para entrar pelas portas da empresa apenas trabalhadores que nunca tinham tido registro em carteira. “Quando entrei na firma, trabalhei no setor de fabricação do fusca; a linha não parava nem por um instante e tudo que era feito ali era computado. A produção era de um carro por minuto”, relembra o potiguar. Em seu tempo de colaborador de empresa alemã, ele comenta que a maioria de seus colegas de trabalho eram nordestinos. “A Volks deveria ter uns 40 mil funcionários; acho que 30 mil deveriam ser nordestinos. ”
Já ambientado com São Paulo, Jaime foi testemunha de um momento político marcante da nação. Em pleno regime militar, no fim dos anos 1970, trabalhadores industriais se erguem em um movimento de protesto liderado por Luís Inácio Lula da Silva. O sindicalismo ganha força no Brasil, principalmente em São Paulo e na região do ABC. Vieira conta como foi sua experiência: “em 78 e 79, começou a ter muitas greves no setor metalúrgico. Eles (os líderes do movimento sindical) marcavam as assembleias no estádio da Vila Euclides, em São Bernardo e ali as decisões eram anunciadas aos operários. Tinha tanta gente lá que até parecia um jogo do Corinthians. Sinceramente, aquelas paralisações me deixaram desanimado de trabalhar na Volks porque a gente ficava muito tempo parado e depois tínhamos que pagar de forma parcelada os dias que a empresa não funcionava. ”
Ele recorda que funcionários das principais firmas do setor automobilístico, como Mercedes Benz, GM, Ford e outras organizações paravam para se reunir nas assembleias em prol de aumento salarial e melhorias para os milhares de trabalhadores. 40 anos depois das greves, o ex-associado do movimento sindical exibe sua credencial de membro como uma lembrança daqueles tempos.
Ausência de políticas públicas deixa migrantes à própria sorte
Até o ano de 1970, quando Jaime desembarcou em SP, os Censos Demográficos não abordavam questões que permitissem calcular diretamente o saldo migratório ou a direção exata dos fluxos. Todavia, no ano de 1980, dados do Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registraram a entrada de 3.383.681 habitantes somente em São Paulo. Todavia, o Saldo Bruto (que envolve entrada e saída) se aproxima de 6.602.458 de pessoas.
Ao chegarem nos centros urbanos, alguns vindos de trem e outros de caminhões pau-de-arara, os retirantes se deparavam com uma realidade de desamparo por parte dos governos locais. Para Lidiane, a capital paulista e as cidades arredores não estavam preparadas para receber o contingente de nordestinos dispersos de suas terras devido à falta de políticas públicas direcionadas aos nordestinos recém-chegados. A pesquisadora diz: “Não haviam políticas que orientavam o processo de dispersão, por isso os migrantes ficaram à própria sorte, o que resulta na formação de favelas e assentamentos irregulares. Nesses espaços era possível morar com os rendimentos adquiridos na indústria ou na construção civil a partir dos anos 60. ”
A afirmação da professora é confirmada pelo pesquisador Henrique Trindade, Gestor do Centro de Preservação, Pesquisa e Referência do Museu da Imigração, ao dizer que “se houvessem políticas públicas voltadas aos moradores da região Nordeste (o que não havia) certamente não eram as ideais. Se fossem formuladas políticas eficazes, esse fluxo migratório viria a diminuir ou até mesmo deixaria de acontecer. ”

“A migração interna massiva fornece força de trabalho abundante para o crescimento industrial... A demanda por moradias e correspondentes serviços é muito grande, mas nada é feito de significativo em termos de política pública para seu atendimento.
Um exemplo da existente carência de atendimento dos estados, tanto da região Nordeste como em São Paulo, está no relato de chegada da jornalista maranhense Francis Bezerra. Vinda de Fortaleza por meio de pau-de-arara, Francis viajou até a capital paulista afim de fugir de um casamento abusivo. Seu falecido marido era engenheiro do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem e, durante suas viagens a trabalho, era acompanhado por ela.
Foi em uma dessas jornadas junto ao cônjuge, na cidade de Fortaleza, que Francis se viu esgotada da relação tirânica que tinha com o marido. Marcada por agressões físicas e sexuais, a maranhense sentiu-se incomodada com a história de “até que a morte os separe”. Foi, então, que decidiu fugir com seus três filhos, Thais, Ilas Maria e Washington Luiz, com destino a São Paulo.
A quilômetros de distância dos fantasmas do casamento, a jornalista, que também é escritora, cordelista, poetisa e presidente da Associação de Nordestinos do Estado de São Paulo (ANESP), foi recebida de maneira indesejada pela cidade que já abrigava migrantes nordestinos em massa. Francis narra: “quando a gente chegou, em agosto de 1970, fomos assaltados e levaram tudo o que a gente tinha. Fiquei com meus três filhos na Estação da Luz sem um único centavo no bolso. O gerente de um hotel de viração, vendo meu problema, deixava eu entrar no hotel às três da manhã até às oito horas. Eu lavava nossas roupas e deixava secar atrás da geladeira. ”
No quarto dia após sua chegada ao Sudeste, Francis notou uma reviravolta se iniciando em sua jornada. Sem políticas que a amparassem em sua situação, a migrante conseguiu um emprego como vendedora em uma empresa de embalagens. No sexto dia, Francis fechou uma venda equivalente a um ano de produção para um de seus clientes. “Meu chefe ficou bobo quando viu o que eu havia vendido. Ele alugou um apartamento de dois quartos em Santo Amaro para morarmos, depois me levou na loja da Marie Claire e comprou roupas para mim e para meus filhos”, declara Francis.
“Diziam que nossos homens eram peões e nossas mulheres, comida de bacana"”
Posteriormente, Francis passou a trabalhar em uma agência de empregos como contato publicitário. Ao fim do ciclo de um ano, a maranhense fez um acordo com o proprietário da agência assumindo o negócio. Ainda assim a discriminação por origem se apresentava como um dos principais desafios para os migrantes da capital.
A xenofobia salientada por episódios como as eleições presidenciais de 2022 em que foram identificadas manifestações discriminatórias contra nordestinos devido a superioridade numérica de votos a favor do candidato Lula na região, não é um problema identificado apenas em nossa era. A presidente da Anesp conta como era a visão de parte da população paulistana acerca dos nortistas que aqui chegavam: “no fim do meu tempo nessa empresa que eu trabalhei ao chegar, havia um costume na instituição de que em um dia determinado da semana o dono da empresa levaria alguma das funcionárias para o drive, chamavam isso de ‘dá ou desce’. Eu neguei aquilo e falei que era algo inaceitável para mim. Ele me disse o que tentaria fazer comigo e eu respondi que ele poderia fazer tudo que tinha me dito com a mãe dele. ”
A autora continua: “Esse foi meu primeiro confronto em São Paulo. Ali me tornei uma mulher forte, lutadora e destemida. Infelizmente aqueles costumes eram comuns na década de 70. Eles falavam que que os homens nordestinos eram peões e as mulheres, comidas de bacana. ” Esse enfrentamento de Francis diante de seus oponentes precedeu sua ascensão como jornalista. Posteriormente, após formar-se no curso de direito, ela passou por grandes veículos de comunicação, como a revista O Cruzeiro, Diário Popular, Gladiador e Revista da Cidade, em que foi redatora chefe.

Contribuição cultural de nordestinos pode ser notada em todas as esferas
Inspirada por personalidades nordestinas como o jornalista Assis Chateaubriand e Maria Quitéria, a primeira mulher a fazer parte do exército brasileiro, Francis relata que a luta para conquistar um lugar de respeito é árdua, ainda que seja existente um amparo legal para os nortistas acerca do preconceito que enfrentam, como a lei 8.441-23 de 1993. Essa lei inclui no Calendário Turístico do Estado o "Dia do Nordestino", em 02 de agosto, como uma forma de trazer luz sobre o povo que construiu São Paulo.
Todavia, esse reconhecimento ainda está verde e seu amadurecimento não se mostra perto. Sendo o Nordeste uma “fábrica de cultura”, nas palavras de Francis, a luta pela valorização dos brasileiros oriundos do Nordeste não acabou. “Temos visto efeito de nossas pelejas, graças a Deus, mas ainda não temos a devida atenção à nossa contribuição cultural para o país”, conclui a fundadora da Anesp.
Mais do que uma ideia, os registros da colaboração de nordestinos para a expansão cultural são notórios na música, na poesia, no teatro e na literatura brasileira. Observações mais aprofundadas sobre esse tema são feitas pelo historiador Durval Muniz de Albuquerque, professor titular da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), doutor em História Social pela Unicamp e autor da obra “A invenção do Nordeste e outras artes ”.
Em entrevista, Muniz afirma incialmente que os nordestinos que vieram a São Paulo no início dos anos 20 eram vindos do estado da Bahia. A partir de então, a chegada dos baianos, em sua maioria negros, interrompe um processo de branqueamento da população que ocorria devido à presença volumosa de imigrantes europeus. Desse período em diante, o termo baiano passa a ser usado com frequência de maneira depreciativa para apontar um indivíduo brega, cafona ou preguiçoso. O emprego equivocado dessa palavra passa a ser usado com migrantes de toda a região Nordeste já que a passagem pelos estados da Bahia e de Minas Gerais era inevitável na travessia até SP.
Essa lógica de estereótipos passa, então, a preencher o imaginário de parte da população paulista na mesma proporção que os nordestinos povoavam a capital. No entanto, com a reputação manchada pelo preconceito, “o migrante é visto apenas como o homem pobre, analfabeto e que será mão de obra na construção civil, ou trabalharam como porteiros e vigilantes ”, diz Muniz.
“Nos estudos sobre migração, não se costuma contabilizar, por exemplo, intelectuais e artistas que vieram em massa para o Sudeste em busca de oportunidades. Se você queria ser um artista de renome nacional, você precisaria ir para São Paulo ou para o Rio de Janeiro”, diz ele. O professor relembra alguns nomes que marcaram a época em que viveram; cita Vicentinho, Lula e Luiza Erundina, líderes de movimentos políticos relevantes para a história nacional. Relembra também os “Búfalos do Nordeste”, como disse Oswald Andrade, entre eles estão Graciliano Ramos (AL), José Lins do Rego (PA), Rachel de Queiroz (CE), Jorge Amado (BA) e muitos outros.
Não podem ser esquecidos ainda as personalidades nordestinas no campo das artes, do teatro e da música, como Ariano Suassuna, autor de grandes obras como o clássico “O auto da compadecida”; o artista plástico cearense Aldemir Martins e Zé Wilker, ator reconhecido nacionalmente, natural de Juazeiro do Norte, Ceará. Outras figuras marcantes para a cultura, entre eles Luiz Gonzaga, o Rei do Baião que foi migrante no Rio de Janeiro ao fim dos anos 30, Patativa do Assaré, poeta e repentista e Nonato Araripe, o embaixador do forró no carnaval brasileiro.